Foi pouco depois da meia noite que ele parou. Como que voltando de
um transe se pegou olhando para a tela luminescente sem saber direito
como chegara ali. Meio jogado para trás na cadeira, scrollava pela
página cento e cinquenta de um blog de humor barato. Não sabia
direito o que fazia, não tinha ideia de que horas eram. Tentou
estimar o tempo pela quantidade de garrafas vazias jogadas no chão
ao seu lado e pelos cigarros esmagados no cinzeiro. Vinte e sete abas
abertas no navegador.
Sair do torpor o fez se sentir cansado. Parecia não dormir há
dias. Procurou pelo celular em meio as embalagens de salgadinhos que
se espalhavam pela mesa e pela casa. O aparelho estava no banheiro.
Segunda-feira. Por isso parecia tão casado: esquecera-se de dormir
do sábado para o domingo.
Vestiu as calças. Deu uns tapas no rosto. Amaldiçoou a si mesmo.
Ficou uns cinco minutos encarando-se no espelho. A única coisa que
tinha para comer era um pacote de biscoito água e sal. "Por que
não compro comida de verdade!?"
Com vinte reais no bolso e um cigarro no canto da boca, desceu as
escadas do prédio atrás de algum lugar aberto para comer qualquer
coisa. A rua deserta, o frio cortante. Nenhuma nuvem no céu, exceto
aquelas que vinham de seu cigarro. Encolhido em seu casaco andou
devagar, como se nunca tivesse passado por algum daqueles lugares.
Depois de dez minutos sem encontrar viva alma e percebendo que todas
as lojas e mercados já estavam fechados há muito tempo, resolveu
voltar, arrependido.
Porém quando chegou na esquina da sua rua olhou para o prédio e
parou. Não queria ir para casa. O que o aguardava lá era a volta
àquele torpor de que desejava fugir. Apalpou os bolsos do casaco
atrás de mais um cigarro. Esquecera o maço em casa. Ele não queria
voltar. Resolveu procurar no outro sentido da rua. Comida e cigarro.
Vez ou outra passava um carro. Um mendigo fumava num canto. Vinte
minutos. Mais ou menos. Foi quase perto da avenida principal que ele
viu uma luzinha acesa iluminando uma placa que dizia simplesmente
"bar". Pelo menos o cigarro estava garantido. Com sorte
conseguiria qualquer coisa para enganar a fome.
A porta se abria para uma escada de madeira. Lá em cima era só uma
fraca penumbra. A única fonte de luz era uma televisão quatorze
polegadas que o velho no balcão assistia. Dois homens se
engalfinhavam no octógono. Já tinha sangue no chão e o velho
estava concentrado.
– Boa noite.
Um dedo reumático levantou-se para silenciá-lo. Somente quando o
juiz encerrou a luta ele respondeu:
– Aquele americano agora sabe que não pode brincar com a gente!
Boa noite.
– Cigarro?
– Qual?
– Qualquer um...
Os cigarros ficavam na parede dos fundos. O velho se esticou para
pegá-lo e se estalou todo. – Não sabia que vocês ficavam
abertos até tão tarde.
– Não ficamos. Devo ter esquecido de apagar a luz da placa de
novo.
– Sei... Já vou então...
– Não, agora que chegou pode ficar. Não vou dormir agora mesmo,
ainda tem mais duas lutas.
– Nesse caso, teria alguma coisa pra comer?
– Acho que deve ter qualquer coisa lá dentro. Deixa eu ver.
O velho foi para a cozinha e ele se sentou ao balcão. Ficou
distraído procurando a caixa de fósforos que acreditava estar em
algum bolso do casaco. Foi quando escutou o barulho da porta se
abrindo.
– Parece que é sua noite de sorte. Dois clientes da madrugada.
O velho não respondeu. Desistiu de procurar os fósforos. Estava se
inclinando sobre o balcão procurando algum isqueiro quando percebeu
quem aparecera na escada. Sim, era alguém inesperado para um
lugar como aquele. Não era uma garota vulgar, não parecia ser
prostituta. Pensou que poderia ser a fugitiva de alguma festa não
muito animada nas redondezas, mas não estava vestida para festas.
Parecia estar perdida no espaço-tempo. Um vestidinho simples, o
cabelo amarrado num rabo-de-cavalo, um grande óculos cobrindo o
rosto.
– Pelo visto eu não sou a única com problemas para dormir.
– Não, acho que não...
– Precisa de fogo?
– Na verdade sim.
A caixinha de fósforos voou até ele. Riscou e acendeu o cigarro.
Gostava de observar o fumo se consumindo nesta primeira tragada e
depois sacudir o palito até o fogo apagar. Empurrou a caixinha para
o lado. Ela já estava sentada ao balcão.
– Gosta de luta?
– Não muito, mas parece que o velhinho ali dentro gosta –
indicou a cozinha com a cabeça e elevou a voz – Ei, já vai
começar a próxima!
Da cozinha veio uma tigela de amendoim e uma meia garrafa de
conhaque.
– Essa luta vai ser boa – e enfiou a cara na televisãozinha, um
copo na mão.
A garota já compartilhava sua comida quando ele resolveu quebrar o
gelo.
– O que você faz fora da cama uma hora dessas?
– Esta é uma boa pergunta. Geralmente os homens querem saber o
que eu faço na cama uma hora dessas.
E gargalhou. Ele não pode esconder um riso. O velho nem se mexeu.
– Só estava tomando um ar quando vi a luzinha na porta e resolvi
entrar.
– Tá, você estava só tomando um ar essa hora da madrugada?
– Quem é você pra falar qualquer coisa? Você também não
parece um bom escoteiro.
Ele tomou um gole. Ela deu uma tragada no cigarro e retomou:
– As vezes gosto de ver a cidade à noite. Sem as pessoas, sabe?
– Hum...
– E você, escoteiro, o que faz aqui fora da cama?
– Comida. Sai pra comprar comida e este foi o único lugar que
achei.
– Um homem prevenido, então.
Virou para o balcão, sem disfarçar o sorriso, e afundou a mão no
amendoim.
– Valho por dois, então. Não é como dizem?
– É. Pena que não é verdade.
– Você quer dizer que eu não valho por dois?
– Acho que ninguém vale por dois, na verdade. Um já é o
bastante...
Ficaram um tempo em silêncio, olhando para baixo imersos na fumaça
que exalavam. Ela tomou o que restava do copo dele e depois o encheu
até a boca. Fez um comentário engraçado sobre a luta, ele riu e
começaram a falar amenidades. Ele não estava prestando muita
atenção. Ficara absorto com aquela garota. Correu os olhos por cada
pedaço do seu rosto: seu nariz arrebitado, os olhos sonolentos, a
franja que teimava em cair sobre os olhos. Sua boca era alegre. Se
movia com uma certa ingenuidade enquanto falava e sorria. Pensou no
inusitado daquele encontro e no que ele podia significar.
Já se via abraçando a garota improvável. Passando a mão em volta
de sua cintura e sendo respondido com um suave apoiar de cabeça
sobre seu peito. Poderia escutá-la falar para sempre. Imaginava-a
sorrindo para ele. Via-os brincando juntos como duas crianças. Com
ela ele seria completamente diferente daquilo tudo que era agora. Não
teria mais o torpor. Ela era a vida que faltava na sua. Em sua cabeça
se declarou para ela.
Sua mãos se tocaram na tigela vazia. Seus olhares se cruzaram.
Tinha uma sujeira na ponta do nariz dela e ele, com um sorriso meio
bobo, a retirou com delicadeza. Os dois riram.
– Vocês vão querer mais alguma coisa? Já vou fechar.
– Não, eu não. E você?
– Não, nós já vamos indo.
“Nós já vamos indo?” Foi isso mesmo que ela disse? “Nós...”
Pagou pelo conhaque – “o amendoim não precisa, eu ia jogar fora
mesmo.'' – agradeceu ao velhinho e se pôs ao lado dela para
saírem. Não falaram palavra. Ficaram com sorrisinhos encantados e
olhares abobalhados. Ele queria beijá-la ali mesmo, sem explicação.
Mas deteve-se, com medo de sua reação.
Ela começou a andar aos pulinhos, a girar empolgada. Falava sobre a
beleza da cidade deserta, o ar puro da madrugada. Os braços
esticados para cima. Ele só conseguia prestar atenção na
delicadeza de seus movimentos, na suavidade da sua voz, no futuro
feliz que teriam juntos. No futuro feliz que teriam juntos se num
piscar de olhos uma moto embriagada não tivesse derrapado na pista e
a esmagado contra um poste.
Ela morreu ainda com um sorriso no rosto.
Ele nunca mais sorriu de novo.
Luís Fintelman. Nossa Senhora do Desterro, vinte e cinco de agosto
de dois mil e treze (editado em trinta de maio de dois mil e quinze)