segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Frestas

Frestas 
Do assoalho 
Frestas 
Dos meus olhos semicerrados 
O fogo que resta 
Te consome em borralhos 

Frestas            
São formadas de instantes         
Frestas                           
São dois mundos intocados          Se tudo que é bom não presta 
Tu és perfeito o bastante

Frestas 
De onde os anjos sussuram         
Frestas 
De onde o pecado é escarrado
Na intimidade, os hipócritas fazem festa 
Na sociedade, eles zurram.

Frestas 
Por entre as portas do armário
Frestas 
Por onde o desejo é escancarado 
Se foder fosse uma peça
Ninguém escolheria atuar nesse claustrofóbico cenário.



sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Volta




Volta



Uma coisa engraçada sobre decisões: Quanto mais rápido você executá-las, mais fácil de não desistir. A velha teoria do band-aid sabe?
Caminhar até o ponto de ônibus, e pensar na dezena de paradas que te separam do seu objetivo pode ser muito desanimador. Se tivesse um carro, ele já estaria na porta dela, pronto para começar a gaguejar alguma desculpa que deixa-se claro: Acabou.
Mas vocês sabem como são os ônibus, grandes responsáveis pela nossa filosofia diária. Nada purifica tanto a mente quanto encarar o vazio das paisagens que já não reparamos, tamanho o número de vezes que passamos por elas, esse tipo de transe desperta divagações, lembra-nos do que há por vir além do ponto final, e às vezes, apenas dormimos.
Ao sentar-se à janela, dando ênfase ao lado dramático destas, procurou se convencer de que tinha todos os motivos para fazer a coisa certa. Ela bem que tentava, mas parecia que entre eles só crescia o silêncio. O problema é que não conseguia se lembrar de nenhuma briga, nada que fosse concreto o suficiente para dizer "Sabe aquilo, daquele dia? Foi a gota d'água!" Não havia, ele pouco reclamava e ela tudo aceitava.
-Mas que merda! - Exclamou, deixando a frase escapar mais alto do que imaginara. Olhares de curiosidade se viraram para ele, tão rápido quanto vieram se dissiparam, afinal, sempre tem o louco que fala sozinho.
Resmungava um discurso para quando chegasse a hora, remendando frases e dando voltas intermináveis, até que se distraiu com a rua pela qual passava. Viu a placa de um bar levemente o escondida por um poste grosso. Fazia algum tempo tinham apanhado a condução errada por ali, tão bêbados que estavam só riam despreocupados do tempo. Aproveitaram o escuro para explorar novos lugares, caminharam cinco quadras na madrugada, como se não existisse perigo no mundo.
Ela tentava, é verdade...
O passeio dos olhos se focou numa senhora que entrava "Consigo ver a calcinha dela... Mas que bela visão." concentração não era bem o seu forte. O próximo pensamento foi um vídeo do Buzzfeed que mostrava homens provando calcinhas, que despertou a idéia "Como eu seria sem um pintor?", que o fez pensar num documentário da Netflix, que o lembrou da lista de filmes Cult que sempre ficava para depois, Feline era menos interessante que um episódio repetido de Friends, riu-se de alguma piada feita por Phoebe, que o levou a ela.
-Volta! - Disse enquanto estapeava levemente o rosto para acordar da série de pensamentos desconexos. Estava quase lá, dois pontos talvez, mas já não tinha certeza do que iria fazer. Pensou na caminhada até aquela porta e se ela estaria tendo um bom dia. Detestaria ser recebido com um sorriso, é muito mais fácil terminar com quem já está de mau humor. O que seria mais egoísta da parte dele?
Olhou pela janela e viu a paisagem familiar ficar para trás, não conseguiu descer, resolveu dar mais uma volta. Quem sabe outra dose, não lhe dava coragem?

terça-feira, 28 de julho de 2015

A Cadeira de Rodah



A cadeira de Rodah



  Rodah era um rapaz criativo. Inventava novos móveis na serralheria de seu pai. Alguns nem chegavam a ser móveis propriamente ditos, mas serviam como esculturas para decorar a casa de sua mãe, a qual mostrava aos vizinhos com muito orgulho.
  Essa criatividade rendeu uma bela criação: uma cadeira. Mas não uma cadeira qualquer, afinal Rodah não era homem de “coisa qualquer”.
  A cadeira não caía. Isso mesmo! Nunca mais teríamos a preocupação de perder o equilíbrio, ao nos espreguiçarmos nos encostos das cadeiras comuns e acabar estatelado no chão.
  O truque da cadeira só Rodah conhecia. Qualquer pessoa poderia sentar ou ficar em pé nesse móvel e independente da força que se aplicava ou da direção em que era empurrada, a cadeira não mostrava nem suspeita que iria cair.
  Não  demorou muito para Rodah ficar famoso. Canais de televisão, repórteres, físicos e curiosos, debatendo qual era o porquê da bendita cadeira não cair. O ibope dos programas só aumentava. Os físicos faziam cálculos e cálculos para tentar achar uma função matemática que explicava o não-cair daquele pedaço de madeira. Foi proposto até a criação de uma nova área para se estudar nas universidades, a incaibilidade. Havia até um prêmio para quem derrubasse a cadeira, com direito à uma vaga no Livro dos Recordes.
  Todos estavam atônitos com a novidade, menos o criador dela. Rodah ficava cada vez mais irritado com a imprensa, do mundo inteiro, perturbando sua casa. Nem dormir ele conseguia direito. Ia para a cozinha tomar um copo de leite, e se deparava com uma câmera na janela, ficava cego com os flashs das fotografias.
  Não demorou muito para ele parar de atender os curiosos. Nem os vizinhos e parentes ele atendia mais. Seus pais, preocupados, foram até sua casa, e ao não serem recebidos, forçaram a porta da frente, arrombando-a.
 O silêncio perdurava na casa inteira. Só após entrarem no quarto é que encontraram o seu filho.
  Lá estava ele, pendurado pelo pescoço na luminário do teto. Enforcado com um cadarço grosso de tênis. O choque só foi maior quando notaram que, logo abaixo dele, encontrava-se a sua maior criação, a qual o criador usou para subir e dar fim a sua vida.
 Estava lá, enfim derrotada, derrubada, caída. Tal qual a vida de seu dono, a cadeira de Rodah.

sábado, 18 de julho de 2015

Tarde de Domingo




Tarde de Domingo - 
20 de maio de 2012 

De certo, não sei depois do quê, mas acabei assim. Não que eu tenha algum problema físico, mas estive á vinte anos nesta cadeira, fora embora com isso minha adolescência e minha juventude.  Dês dos dez anos de idade eu apenas assisto, algo que eu não consigo me impede de mover qualquer músculo que seja. Eu não sei, simplesmente não posso. Foi aos dez anos também que sai da escola, e meus pais, perto de mim nunca mais falaram nisso, ou nela.  Tornei-me um móvel,  creio, com aquele tom de dependência que os aquários possuem, só que com uma função diferente. Eu era como um retrato de uma memória ruim, silente á mim mesmo,  o medo  de me dizer ou de reviver o que tenha acontecido, que meus familiares tinham... E apenas a espera da boa vontade... Cresci como uma planta,  à espera das estações, podia abrir os olhos, ver as cores desbotarem na janela para depois renascerem, o som da vida correndo lá fora. Odiava a televisão, eles ligavam ela pra mim e tudo aquilo me incomodava, no inicio como uma cesta de doces para uma criança com diabetes, depois uma repetição, uma rotina terrível que apenas mofava tudo ao meu redor, tornando os dias rançosos, menos reais. Como se realidade fosse algo que eu entendesse... O mundo estava lá fora. Para ser sincero,dentro de minha casa, raros eram os que olhavam para mim, de minha família, minha mãe cuidava, é claro, com certo distanciamento de governanta. Nunca me olhei em um espelho, e a televisão, com uma sobre tela para ficar com um brilho que não incomoda-se, impedia o reflexo.  Uma vez, com a chegada de visitas, fiquei horas em um porão, olhando para a parede.  Era como se lhes representa-se alguma perda, ou vergonha, como o machucado causado por uma brincadeira infeliz.  Essa covardia, condizia  também com o roubo de parte de minha vida, e acredito que essa culpa, eu era como um estandarte, trazia todos os demônios de minha família à costa, adentrando em suas rotinas, sussurrando a verdade impregnada de passado em seus ouvidos enquanto tentam levar as suas vidas. Era eu, no meu silêncio tão poluído e  estarrecedor, aos observar pelo canto dos olhos. Com o tempo, com a raiva, comecei a me deleitar com isso. Acreditava eu, que se eles tivessem me entregado o meu passado, o que me tornara assim, eu poderia voltar ao que era antes, e esta raiva adentrava, como um ódio ao carcereiro.   Carcereiros estes que me abandonaram, em uma noite, eu em minha cama escutei os passos e o arrastar de móveis, malas, sussurros e o partir do carro. Depois o silêncio, o escuro e o saber certo de que eu estava entregue à morte.  Fora abandonado, por aqueles que roubaram minha vida, estava enraivecido e aquele silêncio denso a me cobrir, o mofar naquele lugar infesto em minha própria sujeira, a fome, a inanição pela displicência daquelas pessoas, apodreceria e minhas vestes cobririam meus ossos, manchando aquela cama com o que restar de mim. Raiva, gritei de raiva e me assustei com minha voz, essa raiva, esse medo me trouxe de volta, com o tempo, consegui arrastar-me para fora do quarto, minhas unhas arranhando o piso,  me assemelhava mais à um réptil do que á um ser humano.  De certo modo, em meu orgulho, era assim que me via. Iria pedir ajuda,  a porta estava aberta, aquela toda luz, a sensação da grama, o cheiro! Estranhei aquela textura como estranhei tudo que presenciei, mas o cheiro estava tão forte! Asfalto, o calor proveniente, e eu, destoando em meu tema de hospital e dor. Não acredito, não acredito como odiava tudo aquilo, como um ciúmes doentio, d’aquilo que destoava tanto de mim. E as pessoas, sim, aquelas coisas me olhavam como se eu fosse um monstro, não, elas não me ofereciam ajuda. Corriam, como quem corre do diabo, poucos tinham coragem de apenas manter distancia. Até que um nobre cavalheiro teve a coragem de tentar me matar, como se abate alguma infestação, algo baixo, aquela lamina do machado refletiu o meu rosto. Meu rosto,  daquela tarde á vinte anos, das luzes, e do momento derradeiro em que tornei-me diferente de vocês.

Exercício de 
20 de maio de 2012 

domingo, 14 de junho de 2015

Colar de Pérolas

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Colar de Perolás





O noivo esperava de olhos fechados enquanto sua Sire despia-se. Ele sentava-se na ponta da poltrona de tecido escuro e deu um leve sorriso, quando a ouviu tirando os sapatos. Imaginava a garota em pé olhando-o. O vestido floral escorreu pelo torço quando ela tirou a alça dos ombros. Afastou a franja do cabelo cor de piche, para ter certeza que ele não espiara no momento em que a roupa tocou o tapete. Podia ouvir sua respiração. Esperando.
A Sire não resistiu ao crescente pedido da Besta, a vontade queimava em sua garganta. Então seus dedos frios percorreram a pele despida de alabastro e faziam-no ter suaves arrepios. A temperatura do corpo níveo dele lembrava-na melancolicamente de uma segunda vida, roubada tão precocemente. Uma rosa deflorada em botão.
Ao doce comando dela, seu noivo abriu os olhos na penumbra das horas mortas. A mulher não sorriu ou se moveu, já tinha encenado aquele ato incontáveis vezes. Não sabia como agir agora que o sentimento não era uma alegoria, tinha medo de deixar-se consumir pelo frenesi e acabar matando o seu amado no processo. Ele deitou seus olhos no corpo nu dela, olhos mortais que vivem tão brevemente e que por esse motivo, nunca conseguem contemplar a perfeição antes que os mesmos fiquem baços e a vida esvaia deles.
Seu corpo era a personificação de Galateia e Caim seu escultor. Seios pequenos, tronco largo, coxas roliças e a pele tão pálida quanto o lírio desabrochado. Para ele, as coisas belas e sedutoras aos sentidos passariam despercebidas e a existência seria um desperdício, se nunca tivesse se apaixonado.
Palavras foram escapando pelos lábios dele, cortando o silêncio e o coração inerte dela. Seus olhos pretos faiscaram e a besta sibilou. Odiava aqueles elogios dirigidos a ela, odiava a adoração vacilante daquele que a amava ingenuamente, odiava aquele amor que nunca tinha sentido e fazia seus lábios se contorcerem num sorriso, odiava porque agora que tinha poderia perder.
Palavras foram escapando pelos lábios dela, trazendo perto de si o silêncio e o coração inquieto dele. Os olhos azuis do seu amado tornaram-se graves e obedientes, ele se ajoelhou para sua senhora e a observou paciente quando ela se ajoelhava também. Sire trouxe-o para seu regaço e deixou que a Besta a guiasse pelas mãos da luxúria. O lábio quente do mortal a fazia gemer em murmúrios baixos, enquanto sentia suas bocas se devorarem e o desejo os consumir. Ela o segurou pelos cabelos claros e rebeldes e ouviu o ulular do Vale dos Ventos quando tocou o pescoço do noivo com um beijo. Casais trocam promessas desfeitas e alianças, eles queriam a eternidade.
Ela fez pressão com os lábios e depois com os dentes na carne macia, o noivo se bateu, o coração desacelerava as batidas até quase silenciar, quando a noiva lacera o pulso deixando que o carmesim da vida o amaldiçoasse. Ele sorveu com gana o sangue que jorrava até saciar a Besta que se contorcia em êxtase enquanto ele podia sentir o rabo de Minos enlaçando-os três vezes.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Gustavo e Carla


Dois jovens de visual retrô se encontravam sentados em um ponto de ônibus, enquanto passava um denso e confuso cardume de pessoas.
- Quem? – Disse o rapaz de maneira indiferente.
-  Marina, ela estudou com a gente no ensino médio.
-   E como ela está?
A menina apoiou a cabeça nos dois braços naquela eterna expressão de tédio – Diferente, bem eu só a vi passando pela rua.
-    Impressionante você: reconhece uma pessoa na rua e não a cumprimenta.
-    Mas eu a chamei pelo nome, até gritei...
-    Ah! Mas, me diga, ela ainda estava com aqueles vestidos compridos dela?
-    Não, estava de terno, ela mudou como tudo aqui – Fez um sinal com a cabeça, apontando para a turba desenfreada.
-     Só nós continuamos não? – Deu um abraço rápido, sorrindo. Mas ela não demonstrou reação – Nós nunca vamos mudar. Eles que entreguem o ponto, nós não.
-    Você não entende Guto.
-    Tanto faz.
Ela tampou o rosto com as mãos – Tinha brinquedos e fraldas nas sacolas dela. Guto, ela era mãe.
-     E daí?
-     Você não entende?
-     Não se preocupe você ainda está como eu te conheci no primeiro ano. Duvido que você fique diferente quando tiver filhos.
Ela esmaeceu. Silêncio, até que falou. – Você não entende Guto... Eu não sei, é estranho, eu me sinto meio só sabe?
Ele se virou para ela, meio surpreso. – Mas você tem a mim!
-   Não é isso Guto, eles nos evitam sabe? Guto, pelo amor de Deus.
-    Eles que se fodam! – Se levantou. – Olha! Eu tenho orgulho de manter o mesmo rosto, de ser ainda quem eu sou e não me entregar feito àqueles bandos de imbecis! Se eles mudaram, é porque são covardes!
-    Eles, eles eram os nossos amigos Guto. – Começou a chorar.
-   Nós não mudamos! Porque eles têm de mudar?  Nós vencemos!
-    O quê que tem para vencer Guto!?
-    Como assim?
Pausa, ela respondeu, se controlando. - Nós, Guto, nós não devíamos ter bebido.  Nós Guto, não devíamos ter ido nadar na piscina.
-     Que piscina?
Ela caiu aos prantos. – Quando nós saímos continuaram a nos chamar!
Ele a abraçou, preocupado. – Que piscina Carla, que piscina?!
-   Nós, depois disso nunca mais olharam para a nossa cara. - Ele ficou quieto. – Tinha, tinha aquele casal... Eles também caíram na piscina, eu os vi Guto. Mas, é confuso, o rosto dela, quando passaram, o rosto dela, sabe, ele tinha algo de estranho.
-    O quê?
-    Meu Deus...
-   Do que estás falando Carla? – Tenso, começava a tremer. – Se, eles nos ignoram, fodam-se, fodam-se eles!
-    Não são só eles Guto. – Ela entra em posição fetal, já Guto descontrola-se. Furioso, fica em pé e começa a gritar varias vezes. – Eu não quero saber! Eu não quero saber! – Com as mãos no rosto se acalma, respira e volta a sentar-se.
-    Guto, ela estava grávida. Estava grávida.
-    Quem?
-    A Marina, estudou conosco no ensino médio.
-    E como ela está?
-    A menina apoiou a cabeça nos dois braços naquela eterna expressão de tédio. – Diferente, bem, eu só a vi passando pela rua.
-    Impressionante você, reconhece uma pessoa na rua e não a cumprimenta.
...
Dois jovens de visual retrô encontravam-se sentados em um ponto de ônibus, enquanto passava um denso e confuso cardume de pessoas. Dois jovens estavam sempre lá sentados, sem seus rostos. Duas almas estavam presas eternamente em um ponto de ônibus, enquanto por lá passava a correnteza densa de um rio. Dois condenados estavam eternamente fadados a prisão em um lugar qualquer, enquanto passava por eles a correnteza vaga e confusa de Letes.



Nota: Texto antigo, de 2007 que fiz para uma oficina de escrita moderna.

sábado, 30 de maio de 2015

Noturno


  Foi pouco depois da meia noite que ele parou. Como que voltando de um transe se pegou olhando para a tela luminescente sem saber direito como chegara ali. Meio jogado para trás na cadeira, scrollava pela página cento e cinquenta de um blog de humor barato. Não sabia direito o que fazia, não tinha ideia de que horas eram. Tentou estimar o tempo pela quantidade de garrafas vazias jogadas no chão ao seu lado e pelos cigarros esmagados no cinzeiro. Vinte e sete abas abertas no navegador.
  Sair do torpor o fez se sentir cansado. Parecia não dormir há dias. Procurou pelo celular em meio as embalagens de salgadinhos que se espalhavam pela mesa e pela casa. O aparelho estava no banheiro. Segunda-feira. Por isso parecia tão casado: esquecera-se de dormir do sábado para o domingo.
  Vestiu as calças. Deu uns tapas no rosto. Amaldiçoou a si mesmo. Ficou uns cinco minutos encarando-se no espelho. A única coisa que tinha para comer era um pacote de biscoito água e sal. "Por que não compro comida de verdade!?"
  Com vinte reais no bolso e um cigarro no canto da boca, desceu as escadas do prédio atrás de algum lugar aberto para comer qualquer coisa. A rua deserta, o frio cortante. Nenhuma nuvem no céu, exceto aquelas que vinham de seu cigarro. Encolhido em seu casaco andou devagar, como se nunca tivesse passado por algum daqueles lugares. Depois de dez minutos sem encontrar viva alma e percebendo que todas as lojas e mercados já estavam fechados há muito tempo, resolveu voltar, arrependido.
  Porém quando chegou na esquina da sua rua olhou para o prédio e parou. Não queria ir para casa. O que o aguardava lá era a volta àquele torpor de que desejava fugir. Apalpou os bolsos do casaco atrás de mais um cigarro. Esquecera o maço em casa. Ele não queria voltar. Resolveu procurar no outro sentido da rua. Comida e cigarro.
 Vez ou outra passava um carro. Um mendigo fumava num canto. Vinte minutos. Mais ou menos. Foi quase perto da avenida principal que ele viu uma luzinha acesa iluminando uma placa que dizia simplesmente "bar". Pelo menos o cigarro estava garantido. Com sorte conseguiria qualquer coisa para enganar a fome.
  A porta se abria para uma escada de madeira. Lá em cima era só uma fraca penumbra. A única fonte de luz era uma televisão quatorze polegadas que o velho no balcão assistia. Dois homens se engalfinhavam no octógono. Já tinha sangue no chão e o velho estava concentrado.
  – Boa noite.
  Um dedo reumático levantou-se para silenciá-lo. Somente quando o juiz encerrou a luta ele respondeu:
  – Aquele americano agora sabe que não pode brincar com a gente! Boa noite.
  – Cigarro?
  – Qual?
  – Qualquer um...
  Os cigarros ficavam na parede dos fundos. O velho se esticou para pegá-lo e se estalou todo. – Não sabia que vocês ficavam abertos até tão tarde.
  – Não ficamos. Devo ter esquecido de apagar a luz da placa de novo.
  – Sei... Já vou então...
  – Não, agora que chegou pode ficar. Não vou dormir agora mesmo, ainda tem mais duas lutas.
  – Nesse caso, teria alguma coisa pra comer?
  – Acho que deve ter qualquer coisa lá dentro. Deixa eu ver.
  O velho foi para a cozinha e ele se sentou ao balcão. Ficou distraído procurando a caixa de fósforos que acreditava estar em algum bolso do casaco. Foi quando escutou o barulho da porta se abrindo.
  – Parece que é sua noite de sorte. Dois clientes da madrugada.
  O velho não respondeu. Desistiu de procurar os fósforos. Estava se inclinando sobre o balcão procurando algum isqueiro quando percebeu quem aparecera na escada. Sim, era alguém inesperado para um lugar como aquele. Não era uma garota vulgar, não parecia ser prostituta. Pensou que poderia ser a fugitiva de alguma festa não muito animada nas redondezas, mas não estava vestida para festas. Parecia estar perdida no espaço-tempo. Um vestidinho simples, o cabelo amarrado num rabo-de-cavalo, um grande óculos cobrindo o rosto.
  – Pelo visto eu não sou a única com problemas para dormir.
  – Não, acho que não...
  – Precisa de fogo?
  – Na verdade sim.
  A caixinha de fósforos voou até ele. Riscou e acendeu o cigarro. Gostava de observar o fumo se consumindo nesta primeira tragada e depois sacudir o palito até o fogo apagar. Empurrou a caixinha para o lado. Ela já estava sentada ao balcão.
  – Gosta de luta?
  – Não muito, mas parece que o velhinho ali dentro gosta – indicou a cozinha com a cabeça e elevou a voz – Ei, já vai começar a próxima!
  Da cozinha veio uma tigela de amendoim e uma meia garrafa de conhaque.
  – Essa luta vai ser boa – e enfiou a cara na televisãozinha, um copo na mão.
  A garota já compartilhava sua comida quando ele resolveu quebrar o gelo.
  – O que você faz fora da cama uma hora dessas?
  – Esta é uma boa pergunta. Geralmente os homens querem saber o que eu faço na cama uma hora dessas.
  E gargalhou. Ele não pode esconder um riso. O velho nem se mexeu.
  – Só estava tomando um ar quando vi a luzinha na porta e resolvi entrar.
  – Tá, você estava só tomando um ar essa hora da madrugada?
  – Quem é você pra falar qualquer coisa? Você também não parece um bom escoteiro.
  Ele tomou um gole. Ela deu uma tragada no cigarro e retomou:
  – As vezes gosto de ver a cidade à noite. Sem as pessoas, sabe?
  – Hum...
  – E você, escoteiro, o que faz aqui fora da cama?
  – Comida. Sai pra comprar comida e este foi o único lugar que achei.
  – Um homem prevenido, então.
  Virou para o balcão, sem disfarçar o sorriso, e afundou a mão no amendoim.
  – Valho por dois, então. Não é como dizem?
  – É. Pena que não é verdade.
  – Você quer dizer que eu não valho por dois?
  – Acho que ninguém vale por dois, na verdade. Um já é o bastante...
  Ficaram um tempo em silêncio, olhando para baixo imersos na fumaça que exalavam. Ela tomou o que restava do copo dele e depois o encheu até a boca. Fez um comentário engraçado sobre a luta, ele riu e começaram a falar amenidades. Ele não estava prestando muita atenção. Ficara absorto com aquela garota. Correu os olhos por cada pedaço do seu rosto: seu nariz arrebitado, os olhos sonolentos, a franja que teimava em cair sobre os olhos. Sua boca era alegre. Se movia com uma certa ingenuidade enquanto falava e sorria. Pensou no inusitado daquele encontro e no que ele podia significar.
  Já se via abraçando a garota improvável. Passando a mão em volta de sua cintura e sendo respondido com um suave apoiar de cabeça sobre seu peito. Poderia escutá-la falar para sempre. Imaginava-a sorrindo para ele. Via-os brincando juntos como duas crianças. Com ela ele seria completamente diferente daquilo tudo que era agora. Não teria mais o torpor. Ela era a vida que faltava na sua. Em sua cabeça se declarou para ela.
  Sua mãos se tocaram na tigela vazia. Seus olhares se cruzaram. Tinha uma sujeira na ponta do nariz dela e ele, com um sorriso meio bobo, a retirou com delicadeza. Os dois riram.
  – Vocês vão querer mais alguma coisa? Já vou fechar.
  – Não, eu não. E você?
  – Não, nós já vamos indo.
  “Nós já vamos indo?” Foi isso mesmo que ela disse? “Nós...” Pagou pelo conhaque – “o amendoim não precisa, eu ia jogar fora mesmo.'' – agradeceu ao velhinho e se pôs ao lado dela para saírem. Não falaram palavra. Ficaram com sorrisinhos encantados e olhares abobalhados. Ele queria beijá-la ali mesmo, sem explicação. Mas deteve-se, com medo de sua reação.
  Ela começou a andar aos pulinhos, a girar empolgada. Falava sobre a beleza da cidade deserta, o ar puro da madrugada. Os braços esticados para cima. Ele só conseguia prestar atenção na delicadeza de seus movimentos, na suavidade da sua voz, no futuro feliz que teriam juntos. No futuro feliz que teriam juntos se num piscar de olhos uma moto embriagada não tivesse derrapado na pista e a esmagado contra um poste.
  Ela morreu ainda com um sorriso no rosto.
  Ele nunca mais sorriu de novo.


Luís Fintelman. Nossa Senhora do Desterro, vinte e cinco de agosto de dois mil e treze (editado em trinta de maio de dois mil e quinze)

Você pode ler mais escritos do autor na Gazeta do Fintelman

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Passos

Sabe aquela sensação de que tem alguém te olhando e, quando você levanta os olhos, tem alguém realmente olhando para você? Eu cresci sentindo isso dentro de casa, mas nunca entendi o motivo. E era só dentro de casa. Dentro da minha casa. Uma vez comentei isso com minha mãe, mas ela apenas me sorriu de volta, como se dissesse “deixe de besteiras, meu amor”. Decidi não falar mais nada, antes que fosse mandado pra um manicômio.
Mas acho que deveria ter falado com mais alguém. Algumas coisas estranhas começaram a acontecer, e, o pior de tudo, a aparecer. Podia jurar que havia alguma coisa diferente onde morávamos. No início eram apenas barulhos, coisas normais de uma casa velha. Encanamento, ratos, gambás no sótão. Ou pelo menos era o que eu esperava que fosse. Depois foram os passos.
Essa “fase” durou mais tempo. Passos lentos, corridos, suaves, pesados. E não apenas durante a noite: por vezes estávamos almoçando e as tábuas do assoalho do andar de cima soavam como se houvesse alguém correndo por elas. Levantávamos os olhos de nossa comida, olhando para o teto como se procurássemos resposta. “Canos velhos...” resmungava meu pai, voltando ao seu prato. Conseguíamos conviver com os sons estranhos, sempre criando desculpas para o que quer que acontecesse.
As coisas começaram a piorar quando os passos tomaram forma. Lembro da primeira vez como se fosse hoje. Estava lendo em meu quarto, quando ouvi os passos novamente. Já estava acostumado, não dei atenção a eles. Mais uma vez, voltando pelo corredor logo à frente do meu quarto. Foi quando vi a sombra característica de alguém passando do outro lado da porta. Alguém estava andando naquele corredor. Mas eu estava sozinho em casa naquela tarde. Foi a primeira vez que aquilo fez meu coração saltar em meu peito. Levantei, sendo obrigado a terminar com minha curiosidade de uma vez. Abri a porta em um único movimento rápido, e coloquei minha cabeça para fora do quarto a tempo de ver o rastro de alguém correndo pela escada.
Lembro de ter revirado a casa com uma faca de cozinha na mão, sem encontrar absolutamente nada. Todas as fechaduras estavam trancadas, significando que, o que quer que estivesse dentro de casa, ainda estava lá. Parei de dormir naquele dia, e, cada vez que os passos soavam, suava frio.
Ainda não consigo dormir. Ainda moro na mesma casa. E tudo piorou quando minha namorada, agora ex-namorada, veio aqui na semana passada. Ela já tinha ouvido os passos, e, como de costume, aceitou nossas explicações sobre o encanamento. Estávamos sozinhos em casa, fazendo coisas que eu prefiro não comentar aqui. Ela pediu para usar o banheiro. Fiquei lá, sentado, pensando o quanto era sortudo de ter a casa toda para mim, quando ela voltou para o quarto, branca como um papel. Perguntei o que havia acontecido. Tremia violentamente, lágrimas corriam de seus olhos.

- Você.... você sabe que tem um homem no seu banheiro?

Não sei qual foi minha reação, mas acho que devo ter ficado igual a ela. Balancei a cabeça, negando.

- E ele não está feliz. Vocês fizeram algo... Não entendi o que ele disse. Mas ele vai vir. Vai vir atrás de vocês... Atrás de você, amor...

E tudo virou um borrão de lágrimas, minhas e dela. Precisei contar isso para alguém, mas minha última esperança foi este papel. Agora estou aqui, sem dormir desde então. Ouvindo passos do outro lado da porta.